A inoperância e a nulidade do Memorando do Namibe

Exclusivo Folha 8.

O mês de Agosto assinala os acordos de Helvoirt (Holanda) que resultaram na fusão da FLEC-FAC de Nzita Tiago e da FLEC-Renovada de António Bento Bembe e o Memorando de Namibe para a Paz na Província de Cabinda, assinado por Bento e o Governo de Angola.

Por Raul Tati
Docente universitário e Activista cívico e Defensor dos direitos humanos

N este ano, o dia 1 de Agosto não foi assinalado curiosamente com a comédia espampanante a que o nosso compatriota Bento Bembe e os seus correligionários nos habituaram a assistir pelas artérias da cidade de Tchowa, nestes últimos anos. Não é da minha conta, mas o silêncio sobre a efeméride não me passou despercebido. E aproveitando o ensejo, deixo aqui algumas reflexões sobre o Memorando de (des)entendimento.

Para uma análise completa do acordo devemos incluir: 1) os antecedentes do acordo; 2) a génese e o processo negocial; 3) o conteúdo do acordo e sua implementação; 4) resultados. Tendo em conta a natureza desta comunicação e o tempo que nos está reservado não vai ser possível fazer uma análise profunda destes pontos. Vou aqui avançar apenas umas pinceladas sobre o assunto.

1) Antecedentes do Acordo: o grande acontecimento político cabindês dos últimos dez anos foi a reunião de concertação de Helvoirt (Holanda) de 23 a 29 de Agosto de 2004 (também conhecida como Conferência de Emaús) entre diversos actores políticos e religiosos de Cabinda, nomeadamente a FLEC-FAC de Nzita Henriques Tiago, a FLEC-Renovada, de António Bento Bembe, a Associação Cívica de Cabinda – Mpalabanda e a Igreja. Uma vez que o Governo de Angola reiteradas vezes alegou falta de um interlocutor válido para negociar o estatuto político de Cabinda, o acto fundamental de Helvoirt foi a fusão dos dois movimentos político-militares em FLEC-Unificada no dia 24 de Agosto de 2004 e a criação de uma plataforma político-diplomática de concertação interna no dia 28 de Agosto, com a designação, por mim sugerida, de Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD).

A Conferência ´´entregou´´ a presidência da FLEC ao Nzita Tiago, sendo António Bento Bembe o Secretário-Geral. Este, entretanto, também indigitado para presidência do FCD. Embora o Governo de Angola tenha recebido por canais apropriados os resultados da conferência, – aliás tinha infiltrado lá uma toupeira na pessoa do mui ilustre espião, o senhor Guálter dos Remédios, hoje premiado com o cargo de Secretário de Estado dos Petróleos – não reagiu durante um ano, até que Bento Bembe doi detido pela INTERPOL nos umbrais do Palácio de justiça de Haia em Junho de 2005, tendo enfrentado a seguir um pedido de extradição para os EUA, assinado pela Secretária de Estado americana, a senhora Condoleeza Rice.

2) A génese e o processo negocial: O cativeiro de António Bento Bembe abriu as portas para que Luanda quebrasse o enguiço através dos Serviços de Inteligência Externa e do Ministério das Relações Exteriores. Consta que o General Garcia Miala e George Chicoti, então Vice-Ministro do MIREX, visitaram Bento e privaram com ele na Holanda. O então Ministro João Bernardo de Miranda terá despachado uma carta ao Ministério dos Negócios estrangeiros dos Paises Baixos para solicitar a soltura de António Bento Bembe, de cujo teor citamos este trecho:

«Tendo em consideração que Angola se encontra neste momento numa fase de consolidação do processo de paz e de ampla reconciliação nacional, todos os cidadãos que cometeram crimes de natureza política no âmbito do conflito interno, foram amnistiados, sendo esta posição do nosso Governo caucionada por resoluções da Organização das Nações Unidas e da Unidade Africana. Assim ao abrigo do ordenamento jurídico actual de Angola, as acusações imputadas ao cidadão angolano não são passíveis de procedimento criminal por se enquadrarem no âmbito do conflito interno que terminou há (3) três anos. Em conformidade ao que acima me referi, gostaria apelar a Vossa Excelência no sentido da libertação definitiva do cidadão angolano». (Datada de 7 Nov 2005).

É neste contexto que Bento Bembe desaparece ´´milagrosamente´´ da Holanda, embora tenha sido ilibado pela justiça holandesa. A partir deste momento, Bento monta o seu quartel-general em Brazaville sob protecção do Governo congolês, mas já com os dois pés na argola dos Serviços de Inteligência Externa de Angola e da Casa Militar do PR. Houve reuniões em Brazzaville e em Ponta-Negra para o alargamento do FCD às demais tendências políticas cabindesas.

Numa das reuniões de Ponta-Negra, moderada por mim, foi concedida ao nosso compatriota Bento Bembe cerca de três horas para explicar do seu misterioso desaparecimento da Holanda. Disse tudo o que quis dizer menos o que nós queríamos ouvir. Mas o seu comportamento começava já a revelar aquilo que escondia e não queria partilhar com os companheiros. Avultaram as suspeitas de traição que pouco a pouco se foram sedimentando até que os membros do FCD, reunidos em Libreville, decidiram exonerar o Bento da presidência do FCD, pois este recusou-se a ir participar da reunião alegando questões de segurança. Há um detalhe ainda que devo aqui realçar: depois da detenção do nosso compatriota, foi decidida a substituição do Bento da presidência do FCD, e fui sondado interna e externamente para substitui-lo, mas eu declinei o convite defendendo que Bento deveria permanecer no cargo porquanto a extradição para os EUA era inverosímil. Entretanto, Nzita Tiago criou um colégio presidencial para o FCD com três membros, onde constava o Engenheiro Agostinho Chicaia, o Senhor Antoine Bemba Nzita e eu próprio. Declinei igualmente esta nomeação e aconselhei o Chicaia a fazer o mesmo.

Quanto ao processo negocial, gostava de dizer apenas que nunca houve negociação no seu verdadeiro sentido. Pelos seguintes motivos: a) o FCD não tinha competências para negociar, mas apenas para congregar as várias sensibilidades cabindesas; b) na Conferência de Helvoirt decidiu-se que depois dos contactos prévios e exploratórios com o Governo de Angola seria criada uma equipa negocial representativa; c) O processo foi orquestrado pela Casa Militar do PR e só na sua fase conclusiva foi envolvido formalmente o Governo na pessoa do então Ministro da Administração do Território, Dr. Virgílio Fontes Pereira; d) O nosso compatriota António Bento Bembe estava a agir como refém do regime angolano e sob as suas ordens, pelo que não estava em condições de negociar de igual para igual; Os parceiros políticos e cívicos do FCD e demais figuras representativas cabindenses no interior e na diáspora ficaram de fora; e) Para um conflito tão complexo, tendo em conta as reivindicações em jogo, foram necessárias apenas três dias para encontrar um acordo (13, 14 e 15 de Julho de 2006).

3) O conteúdo do acordo e sua implementação: podemos aqui dizer previamente que, pelas razões acima aduzidas, trata-se de um acordo pobre, vazio e mau. Está eivado de má fé (pecando contra o principio de ´´bona fide´´) e tem apenas a pretensão de acalmar o fulgor das pretensões cisionistas no Enclave de Cabinda. O famoso Estatuto Especial para Cabinda (um dos anexos do Memorando) foi publicado por decreto-Lei Nº1/07 de 2 Jan no Diário da Republica (Iª série, Nº 1, Terça-feira 2 Jan 2007). Quem lê o texto ficará abismado pelas discrepâncias entre o que diz o texto e a realidade em Cabinda, no momento em que o calendário nos vai colocando nos umbrais do décimo aniversário de tão triste defunto, pois não passou de um nado-morto. Como cidadão de Cabinda não sei o que significa Estatuto Especial na minha vida e na vida das populações autóctones.

A única coisa que sei é que os antigos directores e delegados provinciais passaram a chamar-se Secretários Provinciais. Outro aspecto do acordo, talvez o mais vistoso e o único que está sendo cumprido como uma espécie de ´´pacto satânico´´ é o da acomodação de indivíduos que aderiram ao Memorando em cargos governativos (Ministro sem Pasta, Vice-Ministros, Secretários de Estado, Vice-Governador – o que lá está já ficou vitalício! – e em empresas públicas como a Sonangol, a RNA-Cabinda, ENANA, e a integração de antigos militares da FLEC nas FAA e na Policia nacional com a respectiva promoção a distintos graus militares. Todavia, existem alguns aspectos curiosos no Memorando como a transformação do FCD em partido político.

Não sei qual é o enquadramento que este acordo pode ter no actual ordenamento jurídico angolano, pois ela não permite partidos regionais. Aliás, o próprio Estatuto Especial para Cabinda não tem qualquer respaldo na actual Constituição angolana. Outro aspecto que figura no acordo é a redução substancial do contingente militar das FAA em Cabinda. Nestes nove anos o que temos assistido é, paradoxalmente, o incremento do contingente militar em Cabinda Por conseguinte, atendendo ao principio PACTA SUNT SERVANDA (os acordos devem ser cumpridos), a parte do Governo não cumpriu o acordo, mesmo sendo o mínimo dos mínimos que foi ´´conseguido´´, e nem está interessado em fazê-lo. A outra parte já não existe porque foi politicamente absorvida, pelo que não tem nem autoridade moral nem meios de coacção para obrigar o parceiro a cumprir o acordo. Estamos claramente diante de um acordo win-lose (ganha-perde).

4) Como foi acolhido pelas chancelarias diplomáticas em Luanda?

Proponho à vossa consideração o comunicado de imprensa da embaixada dos EUA em Luanda, por ocasião da assinatura do Memorando do Namibe:

«Os Estados Unidos apoiam fortemente o processo de paz para Cabinda. A assinatura do Memorando de Entendimento constitui um passo significativo para promover a paz e a reconciliação em Angola. Para o povo de Cabinda, o Memorando de Entendimento é mais do que um simples documento sobre paz e reconciliação; é pois uma promessa para o desenvolvimento económico e de crescente influência política. Aguardamos ansiosamente ter conhecimento dos pormenores do Memorando, incluindo o estatuto especial para Cabinda e a implementação dos vários componentes do acordo. Na qualidade de amigo de Angola, acreditamos que este é um marco importante, estabelecido pela liderança de Angola».

No cômputo geral, esta foi a atitude ´´diplomaticamente´´ correcta tomada pelas distintas missões diplomáticas sedeadas nas capital de Angola. É a mesma atitude que se repete em cada pleito eleitoral. Preferem fechar os olhos aos vícios do processo e aplaudir o que daí resultar, mesmo que a montanha tenha parido um rato. Os Estados Unidos da América sabiam da trivialidade do processo e tinham conhecimento de que Bento Bembe era o homem que a justiça americana procurava.

Aos olhos dos EUA Bento Bembe não passava de um terrorista (visão que não partilho porque é preciso distinguir movimentos guerrilheiros de grupos terroristas), já que o rapto de cidadãos americanos é um acto terrorista. O nosso compatriota Artur Chibassa foi raptado em Kinshasa, julgado e condenado pela justiça americana e está lá apodrecer nas cadeias americanas por esse crime. O aplauso ao Memorando de Entendimento do Namibe só pode ser um acto de pura ironia e de cinismo por parte dos EUA. Quando, depois da assinatura do acordo, foi abordada sobre o futuro do Bento Bembe em relação ao seu processo nos EUA, por um companheiro meu da sociedade civil de Cabinda, a antiga Embaixadora americana em Angola, Cynthia Effird, foi peremptória: o mandado de captura emitido pela justiça americana continua em pé. Quid Juris?

5) Resultados: O Memorando de Entendimento não foi bem acolhido em Cabinda, embora tenham tentado ´´encenar´´ actos públicos de apoio ao mesmo, pondo a desfilar militantes da OMA, da JMPLA, do movimento espontâneo, crianças das escolas primárias e secundárias, pelas artérias principais da cidade de Cabinda, a realidade pura e dura não tardou. Os discursos proselitistas do Bento Bembe deixavam claro que ´´uma andorinha não faz a primavera´´. Pelos vistos, o PR José Eduardo dos Santos, estava ao corrente das críticas contra o ME em Cabinda, por isso, no seu discurso proferido em Cabinda aos 10 de Agosto de 2007, fez questão de referir-se a isso nestes termos:

«No quadro dos entendimentos alcançados, definiu-se um estatuto especial para a província de Cabinda. Qualquer trabalho do homem nunca é um trabalho totalmente perfeito, é sempre um ponto de partida, nesse caso concreto, é uma base de entendimento que nos permite marchar juntos, construir algo em comum (…). Nós iniciámos a implementação do estatuto especial, e daqui 12 meses, 18 meses, daqui 24 meses, poderemos fazer um balanço, ver o que se aplicou bem na prática, ver o que devemos corrigir para melhorar, portanto o que devemos fazer para aperfeiçoar todos os nossos instrumentos de acção, o estatuto, os programas e até porque não outras leis que nos permitam então criar as energias ou as sinergias, como se tem dito, para avançarmos todos juntos para a construção de um futuro que seja risonho, que seja bom para todos. Eu sei que há uns que dizem que o que está feito não é perfeito, poderia ser melhor, não dizemos que estamos contra, que estamos a favor, vamos dizer, apliquemos primeiro o que temos, daqui a algum tempo poderemos corrigir, onde houver falhas poderemos melhorar, poderemos aprimorar tudo, o que interessa é que conversemos sempre e que discutamos sempre os nossos problemas e nos locais apropriados para manter a unidade, manter o espírito de reconciliação nacional e concentrar a nossa atenção naquilo que é essencial».

Infelizmente não só passaram os 24 meses, mas nove anos. Neste período nós, os cabindas, temos estado a comer o pão amargo da opressão e das represálias políticas servido a preceito pelo regime contra os ´´dissidentes´´ e os ´´dissonantes´´ do ME.

Em corolário podemos dizer tout court que os resultados dos ME foram os seguintes:

1. Endurecimento do regime e a manutenção a todo o custo do status quo;
2. O ME começou por ser uma rendição, mas na medida que passa o tempo vai sendo uma resignação;
3. O Recrudescimento de operações militares e de inteligência dentro e fora das fronteiras do Enclave, culminando na captura e execução sumária de combatentes da FLEC, a despeito das convenções de Genebra.
4. O amordaçar constante de figuras internas que pretendem uma abordagem mais profunda do problema de Cabinda;
5. Decapitação e descapitalização deliberada da classe empresarial cabindense como estratégia para anular supostos apoios à guerrilha;
6. Extinção arbitrária, por via judicial, da Associação Cívica de Cabinda – Mpalabanda – parceira e membro fundador do FCD.

7) Cenários possíveis:

1) O arrastamento da situação actual até ao seu colapso natural; (do interesse da Casa de Segurança do PR)
2) Revisão profunda do processo para um acordo mais justo e mais inclusivo; (seria do interesse dos Cabindas que aceitam o ME como um ponto de partida que pode ser melhorado, na lógica e na perspectiva do Presidente dos Santos. Estão em curso algumas movimentações neste sentido e já fui contactado).
3) Reconhecimento da nulidade e da ineficiência do acordo e o engendramento de um plano negocial fora do Memorando do Namibe; (do interesse dos cabindas não aderentes ao ME, mas pouco viável para os signatários do ME e seus orquestradores).

Conclusão

Se em quarenta anos de conflito político e militar entre Cabinda e Angola, o melhor que se conseguiu foi o Memorando de Entendimento do Namibe, estaremos a fazer tábua rasa à memória e a nihilizar a verdade. Não é eticamente correcto dar a todo um povo o rótulo de estúpido e trata-lo como tal. Quando oiço dizer por aí a expressão ´´lerpas que nem um cabinda´´, deparo-me sempre com esta dura realidade: estão a tomar-nos de estúpidos. Lançam-nos algumas migalhas e nós aplaudimos; fazem-nos promessas quiméricas, como as centralidades e o famoso porto de águas profundas, e ficamos extasiados pela magnanimidade do senhor Presidente da República, manifestando o júbilo com passeatas e maratonas!… Até quando continuaremos a ser cabindas baratos?!

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